Em finais de 1971, conheci a música de Elton John.
Apaixonei-me imediatamente por aquela música.
Os álbuns de Elton John dos anos setenta, desde Empty Sky - seu álbum de estreia, um marco no incrível “caminho dos tijolos amarelos” do cantor, pavimentado de tantos discos deslumbrantes - até verdadeiras obras-primas, tais como Elton John (alcunhado de “o álbum preto”, the black album, devido a sua capa), Tumbleweed Connection, Madman Across The Water, Honky Château, Don’t Shoot me I'm Only The Piano Player, Goodbye Yellow Brick Road, Captain Fantastic & The Brown Dirt Cowboy e Blue Moves, compuseram a trilha sonora da minha adolescência.
Entre os meus quinze e vinte-e-tantos anos, aquela música me levou a criar toda uma série de pequenos quadros inspirados no que eu percebia do artista e naquilo que eu verdadeiramente amava: sua voz, seu jeito de tocar piano, seus talentos inigualáveis de compositor, sua extraordinária sensibilidade e sua personalidade tão encantadora, e, claro, sua criatividade levada ao extremo, sublimada pela tão legendária excentricidade britânica: um estilo de vida ampliado por figurinos, cada qual mais extravagante do que o outro, e por aquela atitude exuberante, livre dos padrões de boa moral e dos demais rebites e parafusos que os anos setenta cuidaram de dinamitar ao libertar a sociedade da rigidez herdada da década anterior. Era algo que na época eu só podia aplaudir.
Primeiro, porque por meio de exemplos de artistas como Elton John, descobri que aquilo que eu sentia que era - isto é, o quanto que eu era diferente de outros meninos - definitivamente não era o estigma de alguma doença única, infame ou isolada; e, em segundo lugar, porque eu era adolescente, e, portanto, obviamente um jovem idealista e babaca radical que rompia sistematicamente com as regras e os tabus das gerações anteriores, assim como deveria fazer qualquer adolescente que se respeita - ou pelo menos, os adolescentes que eram assim nos anos 70, sem dúvida.
De 1972 até 1976, eu gostava tanto da música de Elton John que pintava muitas coisas, inspirado pelos seus looks e álbuns, assim que eu podia, basicamente, sempre que não estava dormindo, comendo ou fazendo dever de casa. Ou seja: a maioria do tempo.
Em seguida, em dezembro de 1973, eu tive a incrível oportunidade de conhecê-lo, e depois do encontro, uma série das minhas guaches lhe foram apresentadas. Foi assim que aconteceu: alguns meses antes, depois de pesquisas penosas na imprensa musical britânica, eu tinha conseguido localizar a mansão de Elton John. Assim que eu tive a oportunidade de voltar ao Reino Unido no verão de 1973, pude realizar alguns reconhecimentos (que demoraram, já que eu conhecia apenas o nome da localidade onde se encontrava a propriedade), até que finalmente encontrei a casa, e pude caminhar ao redor dela.
Seis meses depois, eu estava de volta na Inglaterra, passando as férias de Natal com meus amigos Pierre e Isabelle de Nice, na casa dos Matusiaks, uma simpática família inglesa que morava em Derby. Tendo levado todos os meus quadros comigo, eu viajei de trem para Londres com todas as obras enroladas num tubo, e cheguei de volta ao local, num bairro muito chique da capital britânica, onde morava Elton John.
Ume vez no portão (de fato, só podia ser este o lugar, sendo que tinha vários carros de luxo, inclusive uma Rolls Royce, estacionados no pátio...), me dei conta que eu estava morrendo de medo e não tive coragem de tocar a campainha; fiquei lá, petrificado durante horas naquela tarde cinza, fria e enevoada, esperando congelado, na expetativa de que alguém acabaria finalmente entrando ou saindo.
Até que finalmente, um veículo parou no portão, e o visitante, intrigado com aquele rapaz que carregava de baixo do braço um grande rolo de papel atrás do qual parecia que estava desesperadamente tentando se esconder, me perguntou o que eu estava fazendo ali. Envergonhado e gaguejando, respondi que eu era um moço francês que queria mostrar seus desenhos ao Elton John. O homem (que na verdade era Tony King, grande amigo do cantor e personalidade da indústria musical britânica, que se tornaria diretor criativo da gravadora RCA e assessor de relações públicas para a revista Rolling Stone) sorriu, se divertindo com a incongruência da situação, e pediu para ver alguns dos desenhos que tirei laboriosamente do meu rolo. Tony King deve ter ficado com pena de mim, pois muito gentilmente ofereceu de levar o rolo inteiro, me prometendo que mostraria minha arte para Elton John; pediu meu telefone em Derby, caso fosse necessário entrar em contato comigo, pois nunca se sabe.
Tony King manteve sua palavra, e até hoje eu tenho pensamentos muito carinhosos e agradecidos sobre aquele homem, pois se não fosse ele, nada do que aconteceu em seguida teria acontecido. Alguns dias depois, o telefone tocou em Derby, e eu fui convidado para ir à casa de Elton John para conhecê-lo porque ele queria me agradecer pelos desenhos. Foi assim que eu encontrei Elton John, no dia 31 de dezembro de 1973. Ficamos batendo papo na sala da casa dele durante cerca de 20 minutos (qualquer coisa além disso teria sido uma façanha, já que a conversa estava de fato muito limitada, sendo Elton John uma pessoa que, embora logo de cara muito simpática e extremamente gentil, era especialmente tímida e reservada, enquanto eu estava a beira de uma apoplexia e prejudicado por um nível básico de inglês...).
No final da visita, Elton John me deu uma cópia autografada do álbum Goodbye Yellow Brick Road,duplo LP lendário que tinha sido lançado no mês de outubro anterior, uma cópia do qual se encontrava na mesa de centro da sua sala de estar.
Pois é, às vezes, os sonhos podem se tornar realidade, esta é a prova.
Mas tarde, durante o inverno de 1974, fui informado pelo seu empresário que Elton John tinha decidido usar uma seleção daquelas obras como material para sua turnê de 1974 pelos Estados-Unidos e pelo Reino Unido, uma turnê gigantesca que devia começar no início do verão do mesmo ano, passando por todas as grandes cidades estadunidenses e encerrando com alguns shows no Reino Unido em dezembro de 1974.
Além das obras selecionadas, eu fui solicitado para criar uma pintura para o cartaz e as camisetas da turnê. Na primavera de 1974, trouxe minha guache intitulada The Fantastic Elton John Band para a equipe de gestão do cantor, nos escritórios da gravadora Rocket Records, na rua Audley, em Londres.Eu estava muito nervoso com o pensamento que aquilo que eu tinha feito poderia não agradar ao Elton John, nem que seja devido ao seu status de mega-hiper-super estrela internacional - o que ele de fato era (exceto na França, ainda mais na época...). Aquele fator poderia ser um problema, tendo em vista que o tipo de representação que eu tinha criado era, para usar termos brandos, bastante irreverente.
A gerência usou também algumas das pinturas para outros fins (uma delas em anúncios na revista Billboard, entre outros, e para a capa do single The Bitch Is Back (do LP Caribou, junho de 1974, edição de Portugal), outra como arte para o convite de uma festa gigante organizada em Los Angeles, oferecida para comemorar o êxito dos concertos dados na cidade em 1974.
Assim, um pequeno milagre.
Até hoje, tenho dificuldade em acreditar que isso tudo realmente aconteceu, pois o menos que se pode dizer é que aquelas pinturas não faziam um retrato muito lisonjeiro de Elton John, sem falar dos demais membros do sua banda - representados de forma menos elogiosa ainda! Mas é isso mesmo que sempre caracterizou Elton John, além do seu gênio musical: seu senso de humor incrível e a capacidade de distinguir a bondade e o carinho por trás da brincadeira da caricatura que parecia tirada de algum quadrinho.
Aquelas publicações representavam, junto com o meu encontro pessoal com Elton John, um dos momentos mais emocionantes da minha vida. Foi, sem dúvida, aquele encontro com Elton John que mais tarde fixou na minha mente a vontade de tentar procurar artistas como Joni Mitchell, David Bowie ou a cantora e letrista francesa Véronique Sanson.
Já mencionei – especialmente na seção deste site dedicada àquela parte do trabalho que eu realizei enquanto jovem e que era inspirado por Joni Mitchell – como os meus encontros com ela e todas as obras que criei depois tinham sido instrumentais na minha decisão de me tornar um pintor. E é verdade. Mas sem dúvida foi o meu encontro com Elton John que me fez entender que antes de se tornar pintor, havia apenas um rapaz que por acaso era um ser diferente, para quem a arte e a criação viriam a ser as bases essenciais da sua existência. Isso eu devo ao Elton John, muito simplesmente. Além, claro, do prazer constante e animador de escutar sua música sem parar ao longo dos últimos quarenta anos, aquela obra imensa, caracterizada por uma criatividade e profusão artística que nunca se esgotaram, que o passar do tempo nos faz apreciar a cada dia mais, e que continuam sendo para mim uma fonte de emoções que não para de se ampliar. E imutável, assim como nos primeiros dias que ouviu o LP Madman Across The Water or Blue Moves, entre outros.
Nos anos seguintes, vi Elton John novamente várias vezes em Paris e Londres, especialmente durante uma sessão de retratos que me deixou fazer em 1976, demonstrando mais uma vez sua generosidade extraordinária com um simples estudante francês que estava produzindo uma série de retratos no âmbito dos seus estudos de artes plásticas... Eu escolhi Elton John como assunto desses retratos. Elton John resolveu concordar, algo que era bastante surpreendente quando se considera em retrospectiva as obrigações e atividades no mundo inteiro de um artista que, na época, tinha ultrapassado de muito a notoriedade - e o número de discos vendidos - dos Beatles...
No entanto, quando meus quadros foram apresentados aos meus professores e colegas de classe na minha escola, minha decepção fui grande: ninguém reconheceu Elton John, ninguém acreditou que eu o conhecia, nem que o homem que eu tinha representado era ele... De fato, o homem estava sem óculos nas fotos... Na verdade, por volta do final dos anos setenta, Elton John tinha tentado usar lentes de contato, o que explicava este outro look. Sua imagem pública era tão intimamente ligada à sua famosa coleção de óculos que os estudantes e professores da minha escola não tinham conseguido identificar aquele homem de quase trinta anos, sorridente nas suas roupas “normais”, com a mundialmente conhecida diva de óculos, nas suas botas prateadas com salto de plataforma 20...
Em 2003, dei para Elton John como contribuição para sua fundação de luta contra AIDS (Elton John Aids Foundation, a EJAF) meu quadro The Boy In The Red Shoes, inspirado na composição Ballad of the Boy In The Red Shoes, uma música linda e comovente que trata deste triste assunto e que constava no LP Songs From the West Coast. Dei aquele presente para participar do meu jeito, e dentro do leque das minhas habilidades, na luta contra os estragos daquela doença, sendo que os lucros da venda beneficiariam a Fundação.
The Boy In The Red Shoes foi minha última obra inspirada na música de Elton John.
No que diz respeito à produção da primeira parte dos anos setenta, quase todas aquelas guaches sumiram; talvez foram guardadas em algum lugar por alguém - mas é mais provável que foram simplesmente perdidas ou esquecidas.Pode ser que hoje o próprio Elton John ainda tenha algumas delas, perdidas no fundo de uma caixa empoeirada num sótão no andar de cima da sua propriedade de Windsor!
Na verdade, não faço a mínima ideia de onde aqueles originais poderiam estar, nem se ainda existem.
Eu mesmo só tenho uma quantidade muito pequena deles em minha posse, o que possibilitou que eu fizesse algumas reproduções decentes para este site. (ver galeria Obras).
A única coisa que sobrou daqueles quadros é uma série de negativos de pequenas fotos tiradas com minha Kodak Instamatic da época para guardar um rastro das obras antes de enviar os originais para Londres ou para os Estados-Unidos. Rastro, aliás, de qualidade medíocre, sem foco e com cores desbotadas.
Incluí algumas fotos daquelas obras nesta página, na parte inferior. Curiosamente, não me lembro de ter pintado a maioria delas...
É aqui então que acaba a minha história com Elton John.
Será? Supondo que durante os últimos quarenta anos, a cada vez que eu colocava no meu toca-CD um dos 32 álbuns de estúdio deste compositor, pianista e cantor inigualável, imediatamente seu sorriso, seus olhos, sua sensibilidade, seu talento e sua voz única estavam ali, claros, presentes e totalmente comoventes, como naquele dia de 1971, quando pus no meu toca-discos o primeiro LP de Elton John que escutei, o álbum Madman Across the Water.
Hoje, eu olho para trás e considero a sequência do “Madman”, estas tempestades que passaram e, finalmente, as águas mais tranquilas que, felizmente, eu navegava as vezes.
E como o canta Elton John na linda música Someone's Final Song (do álbum Blue Moves, um poema do grande Bernie Taupin, letrista dele desde os primórdios das suas carreiras respectivas):
But if I had my life again
I wouldn't change a thing
I'd let nobody, I'd let nobody
Stand inside my shoes.
Mas se eu tivesse minha vida de novo
Eu não mudaria nada
Eu não deixaria ninguém
Eu não deixaria ninguém ficar no meu lugar.
Com certeza.
Não mudarei nada.
Abril 2016
A família Matusiak em Derby, com meu amigo Pierre (à direita) e minha amiga Isabelle (foto à esquerda).
A casa de Elton John-
"Em busca da Cidade das Esmeraldas, com meus amigos Hélène e Pierre,
os Caçadores da Mansão Perdida… » -Verão de 1973
Sala de estar de Elton John em 1973.
(Do documentário "Me, Myself & I" de Brian Forbes)